Encaminhou-se ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.080/09, que substituirá, pelo menos no âmbito da União, a Lei 6.830/80, denominada Lei de Execuções Fiscais. O projeto reformula drasticamente o conceito de cobrança do crédito público e racionaliza a sua operacionalização, mediante a adoção de três regras simples, que de tão simples chega a surpreender tanta demora em implementá-las.
Regra número 1: a Fazenda Pública somente cobrará judicialmente de quem tenha capacidade de pagamento.
É a regra mais importante e está prevista no artigo 20 do projeto, com a seguinte redação:
"Art. 20 - A Autoridade Administrativa legalmente incumbida de promover a execução fiscal suspenderá o ajuizamento da execução enquanto não forem localizados bens, inclusive dinheiro, renda ou faturamento, sobre os quais possa recair a constrição preparatória. "
Significa dizer que, a partir da vigência da Lei, não mais serão ajuizadas ações de execução fiscal contra devedores insolventes, laranjas, empresas fantasmas, sacoleiros e outros tantos devedores que não possuem nenhuma capacidade de pagamento, cujos processos entulham as procuradorias e as varas judiciais sem nenhuma perspectiva de recebimento, antes causando incalculáveis prejuízos.
A regra número 1 é de simplicidade tal que o cidadão mediano, incluindo a mim, não consegue entender por que se demorou tanto para enxergar que o Estado não pode se dar ao luxo de consumir recursos do povo para cobrar de quem antecipadamente sabe que não vai receber, e por que se insistia tanto nessa cobrança inútil, ao ponto de eternizar os processos de execução, que não raramente tramitam por 15 ou 20 anos.
Soaria pouco inteligente, mesmo para o cidadão mediano, as razões apresentadas por João, explicando a José, sobre o que o teria motivado a gastar sua pouca fortuna na tentativa de cobrar dívida de Antônio, que ambos sabiam não possuir condição alguma de pagar. O monólogo seria mais ou menos assim: “Sabe como é, é a herança de meus filhinhos, crédito indisponível, não posso deixar de utilizar todos os meios possíveis para cobrar.”
A justificativa do Estado, até a concepção das novas regras veiculadas no projeto que se analisa, era a mesma de João, de que o crédito era indisponível e ele, Estado, não poderia deixar de usar de todos os meios, inclusive o judicial, na tentativa de cobrá-lo, mesmo ciente de que despendia, inutilmente, esforços e recursos nessas execuções fadadas ao insucesso.
Regra número 2: a administração pública criará um banco de dados que concentrará todas as informações patrimoniais dos contribuintes.
Para o atendimento da regra número 1, de executar judicialmente apenas os devedores com capacidade de pagamento, é preciso que a fazenda pública consiga identificar, com certo grau de certeza, quais são os contribuintes que possuem tal capacidade.
O parágrafo 1º do artigo 4º do projeto autoriza a instituição do Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes – SNIPC, que será administrado pelo Ministério da Fazenda e reunirá, em um único banco de dados, todas as informações patrimoniais, incluindo os rendimentos e endereços das pessoas físicas e jurídicas com obrigações com o Fisco.
O SNIPC será alimentado com as informações já existentes nos bancos de dados da Receita Federal do Brasil, dos cartórios de Registro de Imóveis, departamentos de Trânsito, Secretaria do Patrimônio da União, capitanias dos Portos, juntas comerciais, Agência Nacional de Aviação Civil, Comissão de Valores Mobiliários, Bolsa de Valores, Superintendências de Seguros Privados, Banco Central do Brasil, Câmaras de Custódia e Liquidação, Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, bem como qualquer outro órgão ou entidade, públicos ou privados, que possuam a finalidade de cadastro, registro e controle de operações de bens e direitos.
É a racionalização da cobrança em seu grau máximo: consultando um único banco de dados os órgãos de execução terão acesso a todo o patrimônio formal do devedor. Atualmente as diligências de busca de bens são feitas de forma individualizada a cada um dos órgãos mencionados, mediante milhares de ofícios que vão e que vêm, gerando trabalho burocrático e inútil nas procuradorias e nos órgãos, sendo certo que em pelo menos 80% das requisições o resultado é negativo, chegando-se ao cúmulo de já se ter encaminhado ofício à Agência Nacional de Aviação Civil e à Capitania dos Portos para consultar se o sacoleiro flagrado pela Receita Federal com três sacolas de bugigangas não possuía, por acaso, uma aeronave ou um barco registrado em seu nome.
Regra número 3: todo crédito prescrito deve ser cancelado, de ofício, pelo próprio órgão de execução.
Embora não seja nova a regra número 3, vez que o Código Tributário Nacional disciplina que a prescrição extingue o crédito e a decorrência lógica da extinção seria o cancelamento da dívida, os órgãos de execução, leia-se os seus procuradores, possuem enorme resistência para reconhecer que o crédito está prescrito e resistência ainda maior para determinar o seu cancelamento. A explicitação de tal regra no projeto tem a finalidade de acabar com essa resistência, dando mais segurança aos procuradores.
A regra está prevista no parágrafo 3º do artigo 20, que diz, com todas as letras, que se tiver decorrido o prazo prescricional, a autoridade administrativa poderá, na verdade deverá, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
Para se ter uma ideia, apenas no âmbito da União, o montante inscrito em dívida ativa chega próximo a R$ 1 trilhão. Todos somos sabedores, incluindo o cidadão mediano, de que esses valores são irreais, ficcionais, imaginários, e que não correspondem ao que de fato deveria estar inscrito. Só o que não sabemos é qual o valor real que deveria estar inscrito. Alardeiam que a Procuradoria da Fazenda Nacional não recupera mais que 2% anuais da sua dívida inscrita, o que demonstraria enorme incompetência, mas ninguém sabe informar o quanto esses 2% representariam sobre o valor que de fato é exequível, sobre o valor real da dívida existente.
O projeto da nova Lei de Execuções Fiscais tornará possível que em poucos anos a dívida ativa da União seja depurada e apresente valores mais próximos da realidade. Atualmente, a distribuição dos processos por procurador leva em conta apenas os ajuizados. Com a nova Lei, a distribuição será necessariamente por processos administrativos.
O esboço de um possível fluxograma dessa nova sistemática seria assim: o processo administrativo (PA), contendo as informações sobre o crédito da União, oriundo da Receita Federal do Brasil, da Superintendência Regional do Trabalho, da Delegacia da Agricultura, das varas da Justiça Eleitoral ou de qualquer outro órgão federal, dá entrada na Procuradoria da Fazenda Nacional; o procurador-chefe determina a inscrição do crédito na dívida ativa da União e distribui o PA ao procurador responsável, conforme as regras internas de distribuição; o procurador responsável pelo PA determina a notificação do devedor e, concomitantemente, diligencia, por meio do SNIPC, em busca de bens; se encontrados bens, determina a constrição preparatória e faz o ajuizamento da execução, dando-se o seguimento processual normal; se não são encontrados bens — é essa a principal inovação da Lei —, o Procurador aguardará com o PA no escaninho por um ano e repetirá a consulta ao SNIPC em busca de bens; se encontrados determinará a constrição preparatória e o ajuizamento, seguindo-se normalmente, mas se não encontrados, determinará, de pronto, o arquivamento dos autos (art. 20, § 1º). Transcorrido o prazo prescricional, o procurador reconhecerá a prescrição e determinará o cancelamento da inscrição.
O resultado prático disso é que, em cinco anos da vigência da Lei, há a probabilidade de que cerca de 80% do atual montante inscrito em dívida ativa seja cancelado, permanecendo apenas os créditos bons, cujos devedores tenham capacidade de pagamento, e os créditos novos, ainda não fulminados pela prescrição.
Em data muito recente, este articulista, que oficia em execuções fiscais há mais de cinco anos ininterruptos, teve a curiosidade de analisar alguns processos administrativos tirados do arquivo, e se deparou com inscrição milionária efetuada no ano de 1979, há exatos 30 anos, cuja execução fora ajuizada em 1980, e o processo judicial se encontrava arquivado desde 1981. Eram quase R$ 20 milhões impactando o montante global da dívida ativa da União, e que não deveriam mais estar inscritos há pelo menos 24 anos.
Resta claro que o estabelecimento dessas novas regras revolucionará a execução fiscal, dando-lhe a efetividade que hoje não tem, além de proporcionar o desafogamento do Judiciário e a diminuição de atos burocráticos nas procuradorias e nos órgãos detentores de informações patrimoniais dos contribuintes, gerando considerável economia aos cofres públicos.
Outros fatos a ratificar o quanto o projeto é bom, visto pela ótica de quem defende o Estado, foram as duras críticas que recebeu, ainda quando anteprojeto, de eminentes e renomados advogados tributaristas, que nele enxergavam incontáveis inconstitucionalidades.
Ora, se um anteprojeto de lei contém inconstitucionalidades e considerando que o objeto de trabalho dos advogados consiste justamente na alegação de tais inconstitucionalidades em juízo, não faz nenhum sentido a oposição prematura contra o anteprojeto. Mas impedir que a execução se torne eficaz e muito mais célere, isso sim faz sentido.
Como nem tudo são flores, inacreditavelmente a oposição mais ferrenha e com condições efetivas de dificultar a aprovação do projeto está surgindo dentro da própria Procuradoria da Fazenda Nacional, onde já se fala em movimentações junto ao Congresso Nacional para atuar contra a aprovação da nova Lei.
A crítica mais contundente é a de que a Procuradoria não teria condições estruturais para assumir as novas atribuições. Crítica construída em cima de uma afirmação verdadeira, a de que até hoje a Administração não criou a prometida, necessária e urgente carreira de servidores de apoio, mas que se apoia em premissa falsa, a de que haverá aumento de trabalho com as novas atribuições.
Afirmam os críticos internos que todos os atos administrativos previstos no projeto, especialmente os de constrição preparatória e provisória, poderão ser objeto de questionamento em juízo, e que se hoje a Procuradoria tem milhões de processos, com a nova Lei terá outro tanto de ações cautelares e mandados de segurança, uma para cada processo administrativo em curso.
Nada mais equivocado. Basta fazer a leitura atenta dos artigos 20 e 21 do projeto para perceber que o número de execuções fiscais atualmente em trâmite será reduzido em pelo menos 80%, referentes aos devedores sem capacidade de pagamento — percentual tirado da verificação empírica com os processos a mim distribuídos, sem rigor científico.
Também porque os atos de constrição preparatória e provisória não ensejarão as medidas judiciais temidas, nem em qualidade — ações cautelares e principais — nem em quantidade — mandados de segurança para "cada uma das ações executivas administrativas em curso", denominação usualmente utilizada, mas tecnicamente errada. Não haverá ações executivas administrativas, apenas uns poucos atos de constrição se darão ainda na esfera administrativa. Após a notificação do devedor, o oficial da Fazenda Pública fará a constrição de bens, inclusive nos órgãos de registro, com a averbação da Certidão da Dívida Ativa — devidamente autenticada pela autoridade competente —, avaliará os bens e intimará o devedor. A contar da primeira constrição, a execução deverá ser ajuizada no prazo de trinta dias e, se a constrição se der em dinheiro, via Bacen, o prazo para o ajuizamento da execução cai para três dias.
Quais ações cautelares e principais poderão ser propostas nesses prazos? Para discutir o quê? E os mandados de segurança? Esses instrumentos jurídicos serão cabíveis apenas quando houver ilegalidade ou abuso de poder e não houver outro recurso previsto. Os atos de constrição estarão previstos na Lei, logo não haverá ilegalidade. E ainda que não fosse assim, o próprio projeto já prevê o remédio jurídico para se discutir, em juízo, os atos de constrição, que são as impugnações previstas no artigo 22.
Os críticos da mudança desconsideram também que haverá enorme diminuição na quantidade de trabalho burocrático, ordinariamente de efeitos nulos, realizado segundo as regras atuais, tais como os ofícios à Agência Nacional de Aviação Civil e Capitania dos Portos anteriormente mencionados.
Penso que a proposta é racionalizar o trabalho e permitir que o procurador atue de forma mais efetiva e visando resultados. O efeito imediato da vigência da Lei — lembrando que o prazo de vacância será de 365 dias para a União — será a diminuição significativa do número de ações de execução em trâmite e a diminuição, na mesma proporção, do número de ações de execução a serem ajuizadas. A maior parte do tempo gasto por cada procurador no seu dia-a-dia se dá com execuções fiscais estéreis, que não mais existirão, e todo esse tempo poderá ser bem melhor utilizado para dar efetividade às execuções úteis.
O acréscimo de trabalho para as Unidades da PGFN será absorvido basicamente pelos novos oficiais da Fazenda Pública, cargo criado pelo art. 6º, inciso I, do projeto. Para os servidores e procuradores, se comparado com o momento atual, haverá considerável diminuição, basta ver quantos procuradores e servidores se dedicam atualmente com o irracional, ineficaz, inútil e dispendioso "ping-pong" de execuções fiscais entre a Procuradoria e as varas da Justiça.
Por fim, conclamo aos colegas da Procuradoria da Fazenda Nacional que se mobilizem e atuem junto ao Congresso Nacional, mas não para dificultar a aprovação do projeto de Lei 5.080/09 e sim pela sua aprovação no menor tempo possível, com o que estariam prestando enormes serviços à Procuradoria e principalmente ao Estado Brasileiro.
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