Por Maurício Dias, publicado na edição de 20 de agosto de 2003. Revista Carta Capital
“O longo braço da lei está cada vez mais curto. Para cima, esbarra nas filigranas jurídicas que blindam os criminosos de colarinho branco; para baixo, é barrado por outros argumentos: os fuzis AR-15 ou HK-47 usados pelos traficantes. Nas imensas áreas de favela que a exclusão social plantou no coração do Rio de Janeiro, onde a polícia só entra fortemente armada, e em ocasiões especiais, funcionários desarmados da administração pública têm problemas e correm riscos para cumprir suas tarefas, como aconteceu com o oficial de Justiça, Edison Pacheco de Castro, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro.”
“Ao assinar uma certidão de nove linhas – transcrita abaixo conforme o original – Edison compôs um retrato tragicômico das dificuldades encontradas por servidores da lei em territórios marginais, encravados nas zonas sul, norte, oeste e subúrbios da cidade.
“Certifico que, escoltado por dez policiais militares em duas Patamos de nº 52-0218 e 52-0283 da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que usavam coletes à prova de bala e preocupados com a minha inadequada camisa de algodão, entrei na favela Baixa do Sapateiro, a mais perigosa das favelas do Complexo da Maré e na rua Meireles, nº 44 – casa 06, DEIXEI DE CITAR M. M. S., pois, fui informado pelo seu pai que o mesmo sai pela madruga para o serviço e seu retorno é incerto. Agradecendo a Deus por escapar vivo e os policiais, também, certifico que o referido é verdade e dou fé.”
A certidão é datada de 6 de junho 2003. Naquele dia, Edison, escoltado pelos policiais de duas Patrulhas Táticas Móveis (Patamos), fez uma arriscada maratona de citações judiciais no Complexo da Maré, enfiando-se também pelas vielas de três outras favelas: Nova Holanda, Nova Brasília e Arará.”
Fé e contrafé
“A maior parte dos 35 anos de serviço de Edison foi passada no cumprimento do ritual de entrega de contrafés: as antipáticas intimações judiciais. Em certas ocasiões, pelo que descreve, cumpre o papel profissional com um enorme peso emocional como nos casos de Ações de Despejo. Ocasiões nas quais talvez se sinta como um oficial de injustiça.”
“.... A seguir, Edison conta um pouco da sua rotina de trabalho e explica como e por que decidiu deixar de lado o rigor técnico na certidão em que registra a incursão feita por dever de ofício, na favela da Baixa do Sapateiro:
“As pessoas pensam, de um modo geral, que nas comunidades pobres, nas favelas, não existem devedores em termos de Vara Cível. Lá, mais do que em outros lugares, o desemprego é grande e falta dinheiro. A coisa piorou e até o crediário está difícil de ser pago. As biroscas também estão falindo. Eu fui na Maré citar um cidadão numa Ação de Execução.
Ele é uma pessoa honesta. Só que mora num local onde a minoria impede que se tenha acesso, trânsito comum. Não tem como entrar lá. Nem o carteiro entra. Mas eu tinha um trabalho para fazer. A lei me permite requisitar ajuda policial para a minha segurança”.
“...O comandante da Polícia Militar do Batalhão de Benfica achou melhor escalar duas equipes para me acompanhar. Eu precisava cumprir minha tarefa. Oficial de Justiça não tem colete à prova de bala, não tem porte de arma. E do jeito que a coisa anda, não adianta andar armado. Assim, em lugares perigosíssimos, vamos acompanhados de policiais paramentados para a guerra. As pessoas da comunidade olham para nós como se fôssemos dedo-duro. Afinal, vamos à frente da força policial, de armas engatilhadas, mostrando os lugares. O perigo está aí. Podemos ser confundidos com X-9, os informantes da polícia.
Antes a gente até ia sozinho às favelas. De preferência no fim de semana e na parte da manhã. Hoje se entra na favela a qualquer hora, para o que der e vier, mas com a polícia escoltando. Uma vez indo lá com a polícia, só se pode voltar lá com a polícia. Eles não conseguem gravar o rosto de todo mundo. Mas todos gravam o rosto do civil que vai cercado por policiais.
...“Na Baixa do Sapateiro chegamos por volta das nove da manhã. Acabamos todo o trabalho por volta das dez e meia. Foi hora e meia de tensão. Saímos ‘numa boa’. Sei, no entanto, que deixei para trás um problema para quem fui procurar. A bandidagem certamente foi atrás para ter a certeza do que estava havendo. É perigoso para o morador que fica lá. Afinal, a polícia foi atraída para a área.
Depois me surgiu a idéia de fazer uma coisa diferente, especial. Foi uma maneira humorada, respeitosa e verdadeira, de mostrar como a coisa anda e que há muito risco na profissão do oficial de Justiça. Eu podia ter feito uma certidão com termos técnicos. Mas seria apenas mais uma.
Eu vou me aposentar. Saudades? Acho que não vou ter não. Eu vou para o Mato Grosso do Sul e ninguém nunca mais vai ouvir falar de mim. Por isso eu queria pedir às pessoas que estiverem lendo essa reportagem que, se puderem, conversem com os amigos para que nunca pensem mal do oficial de Justiça. Eu notifico e dou ao acusado o direito de ir se defender. E isso tanto vale para o empresário como para o traficante. Oficial de Justiça não é polícia, não é marrento, não é nada. Ele apenas cumpre o que o juiz determina. Isto é verdade e dou fé.”
“O longo braço da lei está cada vez mais curto. Para cima, esbarra nas filigranas jurídicas que blindam os criminosos de colarinho branco; para baixo, é barrado por outros argumentos: os fuzis AR-15 ou HK-47 usados pelos traficantes. Nas imensas áreas de favela que a exclusão social plantou no coração do Rio de Janeiro, onde a polícia só entra fortemente armada, e em ocasiões especiais, funcionários desarmados da administração pública têm problemas e correm riscos para cumprir suas tarefas, como aconteceu com o oficial de Justiça, Edison Pacheco de Castro, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro.”
“Ao assinar uma certidão de nove linhas – transcrita abaixo conforme o original – Edison compôs um retrato tragicômico das dificuldades encontradas por servidores da lei em territórios marginais, encravados nas zonas sul, norte, oeste e subúrbios da cidade.
“Certifico que, escoltado por dez policiais militares em duas Patamos de nº 52-0218 e 52-0283 da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que usavam coletes à prova de bala e preocupados com a minha inadequada camisa de algodão, entrei na favela Baixa do Sapateiro, a mais perigosa das favelas do Complexo da Maré e na rua Meireles, nº 44 – casa 06, DEIXEI DE CITAR M. M. S., pois, fui informado pelo seu pai que o mesmo sai pela madruga para o serviço e seu retorno é incerto. Agradecendo a Deus por escapar vivo e os policiais, também, certifico que o referido é verdade e dou fé.”
A certidão é datada de 6 de junho 2003. Naquele dia, Edison, escoltado pelos policiais de duas Patrulhas Táticas Móveis (Patamos), fez uma arriscada maratona de citações judiciais no Complexo da Maré, enfiando-se também pelas vielas de três outras favelas: Nova Holanda, Nova Brasília e Arará.”
Fé e contrafé
“A maior parte dos 35 anos de serviço de Edison foi passada no cumprimento do ritual de entrega de contrafés: as antipáticas intimações judiciais. Em certas ocasiões, pelo que descreve, cumpre o papel profissional com um enorme peso emocional como nos casos de Ações de Despejo. Ocasiões nas quais talvez se sinta como um oficial de injustiça.”
“.... A seguir, Edison conta um pouco da sua rotina de trabalho e explica como e por que decidiu deixar de lado o rigor técnico na certidão em que registra a incursão feita por dever de ofício, na favela da Baixa do Sapateiro:
“As pessoas pensam, de um modo geral, que nas comunidades pobres, nas favelas, não existem devedores em termos de Vara Cível. Lá, mais do que em outros lugares, o desemprego é grande e falta dinheiro. A coisa piorou e até o crediário está difícil de ser pago. As biroscas também estão falindo. Eu fui na Maré citar um cidadão numa Ação de Execução.
Ele é uma pessoa honesta. Só que mora num local onde a minoria impede que se tenha acesso, trânsito comum. Não tem como entrar lá. Nem o carteiro entra. Mas eu tinha um trabalho para fazer. A lei me permite requisitar ajuda policial para a minha segurança”.
“...O comandante da Polícia Militar do Batalhão de Benfica achou melhor escalar duas equipes para me acompanhar. Eu precisava cumprir minha tarefa. Oficial de Justiça não tem colete à prova de bala, não tem porte de arma. E do jeito que a coisa anda, não adianta andar armado. Assim, em lugares perigosíssimos, vamos acompanhados de policiais paramentados para a guerra. As pessoas da comunidade olham para nós como se fôssemos dedo-duro. Afinal, vamos à frente da força policial, de armas engatilhadas, mostrando os lugares. O perigo está aí. Podemos ser confundidos com X-9, os informantes da polícia.
Antes a gente até ia sozinho às favelas. De preferência no fim de semana e na parte da manhã. Hoje se entra na favela a qualquer hora, para o que der e vier, mas com a polícia escoltando. Uma vez indo lá com a polícia, só se pode voltar lá com a polícia. Eles não conseguem gravar o rosto de todo mundo. Mas todos gravam o rosto do civil que vai cercado por policiais.
...“Na Baixa do Sapateiro chegamos por volta das nove da manhã. Acabamos todo o trabalho por volta das dez e meia. Foi hora e meia de tensão. Saímos ‘numa boa’. Sei, no entanto, que deixei para trás um problema para quem fui procurar. A bandidagem certamente foi atrás para ter a certeza do que estava havendo. É perigoso para o morador que fica lá. Afinal, a polícia foi atraída para a área.
Depois me surgiu a idéia de fazer uma coisa diferente, especial. Foi uma maneira humorada, respeitosa e verdadeira, de mostrar como a coisa anda e que há muito risco na profissão do oficial de Justiça. Eu podia ter feito uma certidão com termos técnicos. Mas seria apenas mais uma.
Eu vou me aposentar. Saudades? Acho que não vou ter não. Eu vou para o Mato Grosso do Sul e ninguém nunca mais vai ouvir falar de mim. Por isso eu queria pedir às pessoas que estiverem lendo essa reportagem que, se puderem, conversem com os amigos para que nunca pensem mal do oficial de Justiça. Eu notifico e dou ao acusado o direito de ir se defender. E isso tanto vale para o empresário como para o traficante. Oficial de Justiça não é polícia, não é marrento, não é nada. Ele apenas cumpre o que o juiz determina. Isto é verdade e dou fé.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário